06/08/21

Alto-Maé que mora em mim.

O bairro onde moro foi atropelado pelo tempo que forçosamente

nega-se a empacotar outros destinos. Chama-se «Alto»...Quando a

chuva que lhe corre é fria não nas suas temperaturas, escorregadia

como a brisa que se venteia nos buracos felizes destas ruas

serpenteadas em areias ao invés de betão.

 

Chama-se «Alto»...Este habitat de «latas» novas trazidas por sei lá

quem a este paraíso urbano sem nome em nós, queremo-lo assim

entre-alma e carne, passageiro, nomes são significados que não

significam nada. Além de mais não os sabemos ler nem escrever e

se soubéssemos isto menos significaria. Em nós há um bairro onde

moramos e nos moramos, vivemos e morremos a cada milésimo

de segundo. E isto basta-nos. Basta-nos.

 

Tenho um Alto-Maé que vive em mim

Alto-Maé de casas que testemunham o silêncio a fúria em cinza

das moças que vestem saias que demarcam fronteiras suspeitas

com os rapazes que ao invés de calças vestem «tchuna boys»

suas roupas interiores são mais curiosas que o mundo.

Há muitos alto-maés em mim,

das flores que transpiram a volúpia nocturna perto da pelé-pelé

das rotundas de jardins quadrados

da gente alegre e mais esperta da cidade (alto-maé não me deixa

mentir)

nem suas mesquitas e igrejas calam a voz de Deus aqui onde o sol

se senta

mesmo de noite

do negro mercado negro que se devia chamar lua ao invés de

«estrela» pois nela embarcam todas ânsias daquelas gentes,

muitas delas não daqui,

da padaria Moçambique sempre alimenta a esperança de um

melhor pão,

dos barulhos quentes dos ralis antes do fim de semana

do sapateiro que canta com o seu martelo abengalado

de algém a escrever um verso que talvez não mude nada, mas um

verso é um verso,

um verso é um universo

o inverso disto é que não era humano

cada um com o seu alto-maé.

Este é o meu. Este foi o que me deram. Este é o que vejo e que me

olha sempre.

De um outro não preciso.

Daqui consigo sentir a voz de todos alto-maenses

porque o som não tem gente na sua metafísica

nem um bairro existe quando não se tem por onde existir

repito: cada um com o seu alto-maé, e este meu é altíssimo em

mim.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.


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