06/08/21

 Espero a tradição milenar de um pénis sedento. Para vingar a febre

mundana. Há metafísica invsível no cimo do ministério. Morre-se

de várias formas: ou se ignorando os dias, ou lendo-se o interior

dos séculos. Cumpre-se a lei do movimento. E ninguém pode

ultrapassar a sina do inabalável. A carne.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

 Minha voz entra no fundo

e fode o espaço

este selvagem animal

o fogo aberto do orgasmo

esperma maduro

a descer para o útero

vocação carnal

clitóris duro

no compasso rubro

onde estremece o corpo

de volúpia. O leite, o suco, a vida.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Vocação

Boca.

Válvula

motora

onde o dragão

geme sem paixão.

Cauda.

Inóspito espaço

onde

afundo

o ser embriagado.

Externo capim

suco que borbulha

o intenso fogo. 


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Por exemplo:

a noite

escala a minúscula raíz

das coisas

simula a boca

abatida da tarde

 

erudita dialética

dos lábios

ou dos dedos

a língua dos olhos

de repente

chega-se sem sair

instantes que se fazem verbo.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Metáfora

meto

fora

a dicção

menção

erudita

maldita

dita

honra

do autor.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Lua

verbo

corpo

manto

canto

abstracto

silêncio

seio

fundo

estrela

luz

vida

acção.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Círculos

 

A pedra

Quando não move os lábios

Anuncia a timidez

 

O grão de areia

Dorme na insensatez

Da tez do vazio.

 

É frágil o silêncio.

 

É frágil o silêncio na epiderme da noite.

É de pedra a dor embriagante do Ser.

Da dívida das coisas.

É dolorosa atenção que me cresce dentro.

Desta vida em metamorfose.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Alegorias

Repara como se traduz uma lágrima.

Diga-me se tem cor ou sexo a sua língua

a minúscula palavra que a habita.

 

Aves são apenas asas na hora do voo.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Fuga em Ré Menor

Se eu te escrevesse uma carta hoje,

essa carta teria a cor da tristeza.

E não gosto que me leias assim tão

vazia das coisas, tão dentro do

mundo e distante do Ser.

Meu dedo escorrega agora nas teclas

inventadas desta máquina que mal

sei usar e as letras aqui voam

ardentemente, isto incomoda o

hábito em mim de ter as letras a

sorrirem como a lei delas manda.

Não faz mal.

Pensamentos não têm acentos nem

vírgulas nem pontos, sentimentos não

têm grafia e nem sequer fiam.

A moldura humana que me falaste ao

espiar do sol vi agora nesta paisagem

escura do meu quarto, na lua que me

foge dos olhos. Mais não sei dizer.

Desculpa não sei nada hoje.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

01.01.2012

 Nuvens laranja.

Matina dourada

Lê-se o primeiro sol a nascer

Mergulhado em versos de água

Em mar transparente

Voz de vento insua-se na ponta à língua da brisa.

 

Primeiro sol a nascer, primeira vida a emergir.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto

Silêncio

 O silêncio cumpre a sua eternidade de viajar

Âmbula na boca faminta do tempo

Corre com ventos abertos à preguiçosa febre que gagueja no vazio

Tropeça, mexe, desiquilibra

E na sua masculina palavra o silêncio não se adia.

O silêncio embriaga a razão

Devaneia a loucura

Vaga como se quisesse sair do mundo

Da paz audível e sensível do movimento.

 

O silêncio cumpre a sua eternidade de viajar.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Ser quem sou

 Ao Jaime Santos

 

Deixa-me exprimir tudo à minha maneira

Não me peças para que melhor me entendas

Olha-me apenas como sou, valho mais verdadeira

Não procures em mim o que não entendes, nem compreendes.

 

Olha-me levemente e ver-me-ás pura e inteira

Por mais razões e conclusões que depreendas...

Não sustentes a realidade verdadeira e derradeira

Dizes-me mentirosa, falsa, espero que te defendas.

 

Que culpa tenho de falsa parecer se não sou, ou

De saber fingir, mas representar pessimamente?

Deixa-me navegar neste fingimento sem idade.

 

Quem finge permanece verdadeiro, verdadeira sou,

Mas quem representa vive em procura permanente

E, eternamente, encontra novo ser, nova personalidade.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Alto-Maé que mora em mim.

O bairro onde moro foi atropelado pelo tempo que forçosamente

nega-se a empacotar outros destinos. Chama-se «Alto»...Quando a

chuva que lhe corre é fria não nas suas temperaturas, escorregadia

como a brisa que se venteia nos buracos felizes destas ruas

serpenteadas em areias ao invés de betão.

 

Chama-se «Alto»...Este habitat de «latas» novas trazidas por sei lá

quem a este paraíso urbano sem nome em nós, queremo-lo assim

entre-alma e carne, passageiro, nomes são significados que não

significam nada. Além de mais não os sabemos ler nem escrever e

se soubéssemos isto menos significaria. Em nós há um bairro onde

moramos e nos moramos, vivemos e morremos a cada milésimo

de segundo. E isto basta-nos. Basta-nos.

 

Tenho um Alto-Maé que vive em mim

Alto-Maé de casas que testemunham o silêncio a fúria em cinza

das moças que vestem saias que demarcam fronteiras suspeitas

com os rapazes que ao invés de calças vestem «tchuna boys»

suas roupas interiores são mais curiosas que o mundo.

Há muitos alto-maés em mim,

das flores que transpiram a volúpia nocturna perto da pelé-pelé

das rotundas de jardins quadrados

da gente alegre e mais esperta da cidade (alto-maé não me deixa

mentir)

nem suas mesquitas e igrejas calam a voz de Deus aqui onde o sol

se senta

mesmo de noite

do negro mercado negro que se devia chamar lua ao invés de

«estrela» pois nela embarcam todas ânsias daquelas gentes,

muitas delas não daqui,

da padaria Moçambique sempre alimenta a esperança de um

melhor pão,

dos barulhos quentes dos ralis antes do fim de semana

do sapateiro que canta com o seu martelo abengalado

de algém a escrever um verso que talvez não mude nada, mas um

verso é um verso,

um verso é um universo

o inverso disto é que não era humano

cada um com o seu alto-maé.

Este é o meu. Este foi o que me deram. Este é o que vejo e que me

olha sempre.

De um outro não preciso.

Daqui consigo sentir a voz de todos alto-maenses

porque o som não tem gente na sua metafísica

nem um bairro existe quando não se tem por onde existir

repito: cada um com o seu alto-maé, e este meu é altíssimo em

mim.


Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.