O bairro onde
moro foi atropelado pelo tempo que forçosamente
nega-se a
empacotar outros destinos. Chama-se «Alto»...Quando a
chuva que lhe corre é fria
não nas suas temperaturas, escorregadia
como a brisa que se
venteia nos buracos felizes destas ruas
serpenteadas em areias ao
invés de betão.
Chama-se «Alto»...Este
habitat de «latas» novas trazidas por sei lá
quem a este paraíso
urbano sem nome em nós, queremo-lo assim
entre-alma e carne,
passageiro, nomes são significados que não
significam nada. Além de
mais não os sabemos ler nem escrever e
se soubéssemos isto menos
significaria. Em nós há um bairro onde
moramos e nos moramos,
vivemos e morremos a cada milésimo
de segundo. E isto
basta-nos. Basta-nos.
Tenho um Alto-Maé que
vive em mim
Alto-Maé de casas que
testemunham o silêncio a fúria em cinza
das moças que vestem
saias que demarcam fronteiras suspeitas
com os rapazes que ao
invés de calças vestem «tchuna boys»
suas roupas interiores
são mais curiosas que o mundo.
Há muitos alto-maés em
mim,
das flores que transpiram
a volúpia nocturna perto da pelé-pelé
das rotundas de jardins
quadrados
da gente alegre e mais
esperta da cidade (alto-maé não me deixa
mentir)
nem suas mesquitas e
igrejas calam a voz de Deus aqui onde o sol
se senta
mesmo de noite
do negro mercado negro
que se devia chamar lua ao invés de
«estrela» pois nela
embarcam todas ânsias daquelas gentes,
muitas delas não daqui,
da padaria Moçambique
sempre alimenta a esperança de um
melhor pão,
dos barulhos quentes dos
ralis antes do fim de semana
do sapateiro que canta
com o seu martelo abengalado
de algém a escrever um
verso que talvez não mude nada, mas um
verso é um verso,
um verso é um universo
o inverso disto é que não
era humano
cada um com o seu
alto-maé.
Este é o meu. Este foi o
que me deram. Este é o que vejo e que me
olha sempre.
De um outro não preciso.
Daqui consigo sentir a
voz de todos alto-maenses
porque o som não tem
gente na sua metafísica
nem um bairro existe
quando não se tem por onde existir
repito: cada um com o seu
alto-maé, e este meu é altíssimo em
mim.
Hirondina Joshua (2016) Os Ângulos da Casa. Maputo: Fundação
Fernando Leite Couto.