26/07/11

Se me quiseres conhecer (Noémia de Sousa)



Se me quiseres conhecer,

Se me quiseres conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
 esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias de possuir a vida,
boca ragada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,

altiva e mística
África da cabeça aos pés,
-ah, essa sou eu:

se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

e nada mais me perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.


25/12/1949


Noémia de Sousa (2001) Sangue Negro. Maputo: AEMO - Associação dos Escritores Moçambicanos.

1 comentário:

  1. Noémia, na (sua) particular e angustiante tentativa de construção: (1) de uma identidade moçambicana e de (2) uma ponte com o resto de África que, a ser baptizada, tomaria o nome de "(Ponte da)Dor", por ser o que, simultaneamente, nos unia (irmandade de negros/africanos) e nos fortalecia (desejo de liberdade/independência), quando sob o jugo de um xiconhaca/inimigo comum, o imperialista europeu, o branco. Vale, e como vale, pela frontalidade... poética. É de uma coragem notável.

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