Se me quiseres conhecer,
Se me quiseres conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.
Ah, essa sou eu:
órbitas vazias de possuir a vida,
boca ragada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística
África da cabeça aos pés,
-ah, essa sou eu:
se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...
e nada mais me perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
25/12/1949
Noémia de Sousa (2001) Sangue Negro. Maputo: AEMO - Associação dos Escritores Moçambicanos.
Noémia, na (sua) particular e angustiante tentativa de construção: (1) de uma identidade moçambicana e de (2) uma ponte com o resto de África que, a ser baptizada, tomaria o nome de "(Ponte da)Dor", por ser o que, simultaneamente, nos unia (irmandade de negros/africanos) e nos fortalecia (desejo de liberdade/independência), quando sob o jugo de um xiconhaca/inimigo comum, o imperialista europeu, o branco. Vale, e como vale, pela frontalidade... poética. É de uma coragem notável.
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